Prólogo

 Como diz um paciente meu, amiguinhos, num sinal de que a terapia comigo está sendo bem-sucedida e melhorando sua lucidez, "quando a gente chega no fundo do poço, olha pra baixo e percebe que lá existe um alçapão". A vida é como a política brasileira ou a rigidez de meu pênis, sempre pode ficar um pouco pior. Desta vez, a viagem já começou a dar merda antes mesmo de se iniciar. A quatro dias da partida, fui pra cama com uma dorzinha de cabeça chata que inicialmente atribuí ao jejum intermitente, mas ao longo da madrugada veio a febre. No dia seguinte, a dor muscular, e muito mais febre. A uretra ardendo em desespero com a passagem da creatinina praticamente em ebulição. Um dia horrendo de indisposição, me arrastando pelos cantinhos encardidos de meu cotidiano. Sacaram o drama, né... Resfriado? Faz dez anos que não tenho um e não costuma dar febre. Gripe comum? Não me lembro de ter tido alguma em toda minha vida. Agora estou melhor, não vou ter que tomar analgésico pra não ser barrado pelo termômetro da japonesinha de nome Teruko no crachá lá no aeroporto, mas posso estar levando para o Oriente uma variedade totalmente nova de covid, fechando o círculo e retribuindo o favor que há 3 anos fizeram a tantos de nós. Não, não fiz o teste. Negabilidade plausível é importante. Sim, posso ter aquela piora ao redor do sexto dia, e acabar intubado lá em Tóquio. Se precisar de uma sonda vesical, vai ser problema, porque, ainda que o tamanho aqui seja p, só devem ter sonda de tamanho pp lá por aquelas bandas.

E então é isso, chegou a vez do oriente extremo, enquanto não dá merda lá com Taiwan, o que é bem provável nos próximos anos. Entre as incontáveis incompetências que me habitam, a falta de faro para visitar lugares antes que entrem em guerra não é uma delas. Tive a oportunidade de conhecer Israel e até um teco da Cisjordânia antes desta atual carnificina. A mesma coisa com a Ucrânia. Agora é a hora de ir praqueles cantos ou perder o bonde.

Em 2019, já estava planejando esta viagem. Quando a China começou a pesar a mão sobre Hong Kong, vi o gato subindo no telhado. Mal sabia eu que o gato estava prestes a se mijar fedido todo, vomitar um bezoar gigantesco e repugnante, e depois se atirar lá de cima olimpicamente, com a chegada da covid. Mas o Aderbal é como a herpes, sempre dá um jeito de voltar, e cá estou eu de novo embarcando praquele canto do mundo distante demais para não dar ruim. Minha experiência até aqui, com a corrida atrás de vistos, comunicação com hotéis, tentativas de decifrar e navegar por sites disto ou daquilo, é de muita desorganização, autoristarismo, burocracia e ausência de qualquer esforço perceptível para tratar bem o cliente. Pelo que escutei, no Japão ainda há alguma etiqueta de conteção, mas no resto dos países é ladeira abaixo.

O tema visual desta vez, depois de passar o ano retrasado carregando um boné reaça pendurado na alcinha da calça o tempo todo, e o ano passado, carregando, vestindo e tirando uma máscara de látex meio fedegosa várias vezes por dia, embute um pouco menos de sofrimento pela arte: simplesmente relembrar a cada foto a relativa humildade centimétrica fálica média dos locais, e com uma bandana com a bandeira de cada país na cabeça. Claro que, sendo o mundo este lugar de danação e frustração cruel e contínua que é, parece que ninguém neste planeta teve a nem tão brilhante ideia fabricar bandanas com bandeiras de países, e o melhor que consegui fazer foi comprar umas bandeiras reais gigantescas, em tamanho real, de plástico, enrolar aquelas merdas na cabeça e ficar com algo parecido não como uma bandana, mas com aqueles chapéus de burro que botavam lá na cabeça do Luis Ignácio na escolhinha de alfabetização de Garanhuns, quando ele era posto de castigo no canto da sala, ajoelhado nos caroços  de jerimum, porque ficava lambendo os testículos do Putinzinho e do Madurinho em vez de aprender a ler e escrever.

É isso aí... agora um mês substituindo a dor de estar a maior parte de meu tempo acordado passando fome em jejum pela dor da culpa de não fazê-lo e da sensação de estar engordando uma arroba por dia. Um mês comendo peixe cru ou comprando no supermercado alguma coisa sem a mais remota ideia de do que se trata. Quiçá experimentando um espetinho de baratas fritas. Se é pra acabar quebrando um dente na viagem, por que não mordendo uma delas?

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